sábado, 9 de outubro de 2010

Uma doença chamada crack


O trabalho permanente e às vezes frustrante de uma ONG que tenta reduzir os riscos à saúde dos viciados da Cracolândia

Quando Valter não consegue mais resistir, ele se tranca em algum dos hotéis da região da Luz (no centro da capital paulista), daqueles de 5 reais o pernoite. Cachimbo na mão fuma várias pedras de crack na sequência. “Quando tenho alguma recaída, me tranco e fico fumando a noite toda. Não tem essa de uma pedrinha só”, afirma. Bebe cachaça junto. Explica que a droga dá vontade de beber.
Dinheiro para usar o crack não é problema. Um primo é traficante e, em troca de uma comissão, ajuda a movimentar o negócio. “Pego 60 pedras, por exemplo. Vendo 40 e entrego o dinheiro para ele. As outras são minhas.” Antes, levava sempre alguma mulher. Agora prefere usar a droga sozinho. “Não quero arrastar ninguém para esse caminho.”
A noitada do crack repete-se a cada três ou quatro meses. Valter está em tratamento em um Centro de Atenção Piscossocial) de Álcool e Drogas (Caps). Frequenta a clínica aberta há três anos. Tem apoio de psiquiatras e toma antidepressivos, remédios para dormir e para reduzir as sensações de abstinência química. Vai bastante ao centro de convivência da ONG “É de Lei”, especializada em política de redução de danos para usuários de drogas. Lá recebe apoio de psicólogos e assistentes sociais, convive com outros viciados, vê filmes, participa de debates e oficinas e vai ao ponto de cultura.
Para Thiago Calil, um dos psicólogos da entidade, os usuários passam a ter mudanças em seu comporta mento social após o convívio fora das áreas de consumo de crack. “Existem lugares na cidade que eles achavam que não podiam ir. A pessoa acaba, em muitos casos, aceitando os preconceitos dos quais é alvo e passa a se impor restrições, por acreditar que tem menos direito que os demais.”
Depois de passar pela cadeia, condenado por roubo, e morar na rua, Valter vê aos 39 anos uma nova perspectiva para a sua vida. Voltou a estudar, fez um curso de confeiteiro e mora em um albergue. “A gente é discriminado por morar em albergue. Não consegui um emprego fixo, mas acabo fazendo uns bicos como confeiteiro.”
A ansiedade e a frustração com os problemas do dia a dia alimentam as recaídas. “Hoje, quando uso, fico mal. Sinto que decepciono quem acredita em mim.” Ele conta que não sente mais qualquer euforia com o uso. “Fico trancado no hotel, em pânico, achando que a polícia vai me pegar. Depois, me sinto culpado de ter usado.”
O Ministério da Saúde tem estimulado a política de redução de danos a usuários de drogas e o tratamento de dependentes químicos em meio aberto, estratégias que recebem críticas dos defensores de isolamento e abstinência total. No Congresso, tramitam projetos de lei que pretendem facilitar a internação compulsória de usuários de drogas. Uma comissão externa da Câmara dos Deputados analisou os efeitos das legislações sobre drogas de Portugal, Holanda e Itália e deve percorrer seis capitais brasileiras para entender melhor os impactos da política brasileira para o tema. Segundo estimativas do governo, há 600 mil dependentes de crack no País, a substância que mais preocupa os especialistas.
A abordagem dos redutores de danos ao usuário de drogas começa com as questões de saúde. Além de panfletos sobre cuidados em relação ao sexo e ao uso de drogas, Calil e Igor Zinza, o outro psicólogo da ONG, visitam as regiões da baixada do Glicério e da Luz com kits de piteiras de silicone e protetores labiais. A piteira evita que o cachimbo queime os lábios dos usuários e o protetor labial ajuda na cicatrização. Assim, eles pretendem reduzir os casos de doenças como hepatite, herpes e tuberculose, transmitidas no compartilhamento de cachimbos. Distribuem ainda camisinhas e falam dos cuidados para se prevenir da Aids. Em algumas cidades da Europa e do Canadá, a política de redução de danos inclui salas de consumo monitorado de drogas, em que o usuário aplica a substância preferida em uma sala individual e é acompanhado por profissionais de saúde, que lhe oferecem os materiais adequados e evitam casos de overdose.
Entre as iniciativas brasileiras, tentou-se a distribuição de cachimbos de madeira aos usuários de crack. Mas a ideia deu errado por causa da falta de conhecimento sobre o perfil de consumo da substância. “Eles fumam também a ‘raspa’ ou a ‘borra’, que fica no fundo do cachimbo e é mais forte e a ‘tochada’, que fica nas paredes do tubo. Não dá para fazer isso com um cachimbo de madeira”, explica Calil. Os redutores de danos discutem com os usuários a proposta de um novo cachimbo, mais seguro do que os atuais, normalmente feitos pelos próprios consumidores. “O alumínio queimado é muito tóxico para o pulmão. O ideal seria usar cobre, mas é muito caro”, afirma.
Alemão está com 44 anos e conta que usa a substância desde os anos 80, inclusive quando esteve preso. “Antes da criação do PCC (organização criminosa que atua dentro dos presídios e passou a ter influência além dos muros), havia crack nos presídios, depois foi proibido. Só tem as outras drogas.” Seu cachimbo de cobre, com um tubo com mais de 20 centímetros, se destaca entre os demais. “É comprido para evitar que a fumaça prejudique meus olhos”, explica. Ele conta que alguns comerciantes da região vendem esses cachimbos. O dele custou 17 reais.
Quando Calil e Zinza percorrem a Cracolândia, os viciados formam filas para pegar piteiras e protetores labiais. Antes de entregar os kits, os agentes conversam com os usuários. “Os dois são nossos amigos”, conta Baiana, de 23 anos, três anos na região. Ela fala dos filhos, que moram com a família na Vila Brasilândia e cujos nomes estão tatuados em seu braço direito.
Baiana reclama da violência dos guardas civis metropolitanos. Um homem mostra hematomas e escoriações: segundo ela, resultados da violência de guardas na noite anterior. De acordo com Calil, a ONG, que recebe financiamento público, tentou e não conseguiu um diálogo com os batalhões da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana, atuantes na região. Na visão do redutor de danos, a aproximação com outros setores ligados ao governo ajudaria a integrar as políticas para essa população. A parceria funciona com as equipes do Programa de Saúde da Família. Esse contato tem servido para melhorar o tratamento que os usuários recebem quando precisam de atendimento médico. Os psicólogos da ONG também dão palestras a funcionários de abrigos e albergues sobre as peculiaridades dos usuários de drogas.
Para Baiana, que apesar do apelido é paulistana, a expulsão dos usuários de crack da região da Luz deve ser um desastre. “Aqui, a situação está localizada e não são todos que chegam aqui. Se espalhar, mais pessoas terão mais acesso.” Ela diz que os usuários de crack são muito unidos entre eles. “Um ajuda o outro. Se a família vem buscar alguém, a gente dá apoio para levar. Se depois essa pessoa tentar voltar, a gente expulsa daqui da região. Não queremos o mal dos outros.” Segundo a usuária, os companheiros estão em estado grave quando deixam de se alimentar e tomar banho e vivem apenas em função da droga. “Com 5 reais, você toma banho e dorme. Tem também o pessoal da Cristolândia (ação de igrejas evangélicas na região), que sempre dá uma força.”
Um jovem anda pelas imediações da antiga rodoviária com a ex-namorada a tiracolo. Enquanto caminham de um lado para o outro, discutem como a dependência química do rapaz abalou o relacionamento entre eles, em uma autêntica via crucis do crack. Horas depois, ele seguiria para mais uma internação – as anteriores não surtiram o efeito desejado. Ela está lá para confirmar que ele pegará mesmo a perua até a clínica. “Até parece que eu vou fugir, quem foi atrás de reabilitação fui eu”, repete o jovem. A ex-namorada não se convence e o segue para onde ele vai.
Pedro (nome fictício) continua a circular na Cracolândia, mas orgulha-se de ter tirado quatro pessoas de lá, entre elas uma criança. “Ele não tinha nem 10 anos. Levei na marra para uma perua do atendimento social porque queria ajudá-lo. Dizem que o menino está em uma clínica, em tratamento. Não quero nem que ele me veja, para não se lembrar do crack.” O homem, de barba grisalha, conta que gostaria de entrar com uma representação contra o governo por causa do descaso com crianças e adolescentes que estão nas ruas, usando crack. “Isso aqui é um problema social e de saúde pública, não de segurança. A solução vai sair daqui mesmo, da rua. É como o governo dos Estados Unidos, que passou a recrutar hackers para combater outros hackers”, sugere.
A experiência indica até o melhor momento para abordar os usuários de crack. À noite, muitos estão sob um efeito forte da substância e mal conseguem conversar. Por isso, os redutores de danos preferem ir à tarde. Quando estão reunidos em grandes grupos, o diálogo é difícil, pois é o momento em que ocorre uma verdadeira feira de escambo, com qualquer produto que puder ser trocado. A presença de traficantes e policiais sempre atrapalha.
Valter conta que o momento em que decidiu procurar ajuda foi quando não tinha onde tomar banho e passava fome na rua. “Sabe o que é dormir de pé, debaixo de uma marquise, em um dia de chuva?” Ele olha para o passado e agora pensa no futuro. “As coisas estão dando tão certo que tenho até medo, não estou acostumado com isso.”

Autor:Leonardo Fuhrmann/Carta Capital